20 de junho de 2010

As confissões literárias de Caio Fernando Abreu



A existencialidade de personagens que buscam sentidos para a vida e desenvolvem suas próprias versões para o mundo onde vivem. Esse é o legado proporcionado nas leituras de “Morangos Mofados”, do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu.

Certamente, esta obra, originalmente lançada em 1982, é a mais importante da bibliografia do escritor. Os contos (oito) divididos em três partes: O Mofo, Os Morangos e Morangos Mofados.

Com “Morangos Mofados” o escritor consegue sintetizar bem a proximidade dos personagens as angústias e sonhos desperdiçados de uma geração que sentia suas aspirações envelhecerem sem conseguir sentir o gosto da liberdade naquele contexto do começo da década de 80.

Os textos de Caio Fernando Abreu são uma confissão em primeira pessoa de um amante incondicional da palavra. Dedicou-se preferencialmente aos contos e sua narrativa curta talvez resida no sentido de ser um dos seguidores de Dalton Trevisan, no que tange o minimalismo da produção de Morangos Mofados.

Entre a costumeira tradição epistolar do escritor surge o nome de duas grandes escritoras brasileiras – Clarice Lispector e Hilda Hilst, como fica relatado na carta abaixo.


Hildinha, a carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco. Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário. Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e sai para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: - "Fica comigo." Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre Lázaro. Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for. Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir. Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim - teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio. Fico por aqui, já é muito tarde.

Um grande beijo do teu Caio.

29/12/1970


A produção de Caio Fernando Abreu foi intensa em todos os sentidos, e permeou toda a variedade de seus textos, desde os romances – “Limite Branco” (1984), “Onde Andará Dulce Veiga?” (1990), as novelas – “Triângulo das Águas” (1983), “As Frangas” (1988), “Bien Loin de Marienbad” (1994) até as peças teatrais – “O Homem a e Mancha” e “Zona Contaminada”.

Há quase doze anos atrás, em 25 de fevereiro de 1996, o Brasil perdia um dos seus pensadores mais influentes das últimas décadas do século XX. Caio Fernando Abreu foi um escritor que conseguiu com seus trabalhos ir além do impressionismo com as palavras, seus textos viscerais abrangiam a alma e o coração do leitor. Poucos conseguiram falar com tanta autoridade sobre sexo, medo, solidão e morte.

A obra de Caio Fernando Abreu continua atual, autêntica e intensa, o mundo e as pessoas continuam fragmentados, mas a esperança em acreditar nas mudanças é substancial para a perpetuação da vida: “Eu sou de uma geração muito colonizada por filmes americanos, eu sempre acredito em um happy hands, num beijo da Doris Day no final, isso é esperança”. (Caio Fernando Abreu, 1994).



Bruno Scuissiatto




0 comentários: