4 de julho de 2010

Faces da Seca

"O sertanejo antes de tudo é um forte!"


Euclides da Cunha e seus sertões são assuntos já há muito tempo estudado, analisado, contrariado, mas com um consenso: não é ‘enquadrável’ a um gênero. Mas há muita discussão em torno dos seus limites literários e/ou históricos ou sobre seu ‘ensaísmo social’, como já disse Bosi (1936, p. 309).

O escritor é chamado de autor de uma única obra, cuja obra moveu águas estagnadas da belle époque e as tensões da vida nacional. A revolta de Canudos, do líder Antonio Conselheiro iniciada em novembro de 1896, teve duração de quase um ano e uma certa repercussão e conhecimento popular, mas não teria sido o mesmo sem a “saga sertaneja” (SIMON, 2009) de Euclides.

O ensaio deste escritor comprometido socialmente, humanamente e com a natureza teve duração de aproximadamente três anos (1898-1901) e aclamação do Instituto Histórico de Geográfico Brasileiro da época. O autor teve um esforço em colher o real e seriedade e boa-fé com a palavra.

Ora, a obra de arte literária possui critérios de julgamento e um deles é a ficção. Os sertões escapa deste critério, não totalmente, mas possui outras qualidades que fazem com que o estudemos ainda hoje dentro do quadro literário na universidade e na escola. Critérios este como a linguagem literária, bem destacada pela professora Maria Simon, que faz um estudo inteiramente sobre estas características (1). Simon diz que, depois de Euclides, os termos “sertões, sertanejo” passaram a ter um valor diferente no imaginário popular. Sua linguagem é uma mistura de terminologia científica, brasileirismos e palavras tidas como pertencentes à literária.

Outro aspecto muito relevante é a leitura de Euclides como um pessimista míope, “afeito apenas a narrar desgraças inevitáveis de homens e raças”, mas Bosi destaca que “quem julgou o assédio a Canudos um crime e o denunciou era, moralmente, um rebelde e um idealista que se recusava, porém, ao otimismo fácil” (1936, p. 311), diferente de dizer que seja incapaz de enxergar alguma esperança.

A obra pré modernista euclidiana se encaixa, sim, em um alto nível de cultura científica e histórica e, ainda, “o flagelo das secas propicia ao escritor os momentos ideais para pintar com palavras de areia, pedra e fogo o sentimento do inexorável” (BOSI, 1936, p. 310).

Mas as tentativas de classificação continuam: Afrânio Coutinho a classifica como uma obra de ficção entre romance e epopéia, já Guilherme Merquor diz se tratar de uma saga sertaneja e também um romance por usar linguagem literária. Há ingenuidade tamanha até para tratar Euclides como um ”simples copista”.

Mas porque não considerar a opinião do próprio autor sobre a relação entre literatura e ciência?


Sagrados pela ciência e sendo de algum modo, permita-me a expressão, os aristocratas da linguagem, nada justifica o sistemático desprezo que lhes votaram os homens de letras – sobretudo se considerarmos que o consorcio da ciência e da arte sob qualquer de seus aspectos é hoje a tendência mais elevada do pensamento humano. (...) Qualquer trabalho literário (do futuro) se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das experiências. (...) Eu estou convencido que a verdadeira impressão artística exige fundamentalmente a noção cientifica do caso que a desperta. (CUNHA, 1902)


Mas para a literatura o que se ressalta é o seu caráter literário
e artístico e é, portanto, antes de tudo uma obra de arte literária com uma indiscutível qualidade narrativa e um caráter inigualável.Pode ser visto como uma grande crônica, um diário de guerra, um tratado histórico, um ensaio antropológico-sociológico, uma peça literária e até como um discurso forense, mas é fundador de um movimento artístico chamado Os sertões.



1 - Características da Linguagem de Euclides da Cunha em “Os sertões”, por Maria Lucia Mexias Simon (USS/UVA)

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